Una arepa para mis panas

Num mundo culinário cada vez mais global, no qual todos somos chefs e críticos gastronómicos surgem receitas virais que viralizam mas também desapontam. As receitas de todo o mundo estão cada vez mais disponíveis à distância de um “scroll” e surge invariavelmente  nos comentários uma afirmação filosófica que não quer morrer - “esse prato não é suposto ser feito assim!”. Há uma tendência para caminharmos com pézinhos de lã no que diz respeito a degustar, e especialmente, a preparar um prato que não seja nacional.

Na cozinha venezuelana há um pequeno alimento básico que, modesto e discreto, é a base de muitas refeições - e por vezes a estrela também - que não carrega consigo essas expectativas e do qual vos quero falar.

A arepa tem as suas origens no atual território da Colômbia, Panamá e Venezuela - os ameríndios preparavam o milho - o grão de ouro - coziam-no em fogo lento, juntavam-lhe água, força de braços e moldavam-no até se tornar numa forma redonda, plana, ía ao fogo outra vez e finalmente, era consumido. Os debates sobre se a arepa é intrinsecamente venezuelana ou colombiana são incessantes, se bem que a História e os fatos falam mais alto: a sua origem provém de um tempo no qual as fronteiras nem linhas no chão eram. 

Hoje a sua preparação é muito mais fácil: graças aos processos industriais de pré-cozedura da farinha de milho, os pacotes de Harina Pan, prontos a serem misturados, marcam presença em qualquer lar venezuelano - seja este dentro ou fora do país.

Chegou ao parágrafo pelo qual ansiava neste artigo: após a criação de uma singela arepa, o ato de a abrir, queimando sempre os dedos enquanto se faz deslizar a faca (sim, nem a pessoa mais veterana se escapa desta provação), fazem-se soar as vozes sobre qual o melhor recheio - a reina pepiada, fresca e energética, pavoneia-se entre os favoritos; a dominó, para os fãs de contrastes assertivos; uma carne mechada, imponente, suculenta e perigosamente irresistível. Até a sencilla, barrada com manteiga e um queso de mano tem o seu clube de fãs próprio.

Mas a arepa não se fica nas banquinhas de street food e a ocupar uma mão apenas. 

Inteira, pode ser partida à mesa para acompanhar o assado de domingo. 

Partida, pode ser partilhada com um filho, soprando sempre avidamente, esperando que deixe de fumegar para poder demolhá-la na sopa e depois levá-la à boca pequenina, ainda antes de aprender a andar, já sabe que a massa morna da arepa com mantequilla a derreter é um daqueles luxos desta vida dos quais não se fala, mas sente-se. 

Pequenas e amorosas ou do tamanho de um prato e imponentes, acompanham-nos do pequeno almoço à última ceia. Dão-nos a energia necessária no início de um dia, e amparam-nos à saída da discoteca, que de forma pouco súbtil, acama o Ron e o licor de anis. 

As famosas “calles del hambre”, zonas de bancas de comida que funcionam 24 horas.

Foto via plazatomada.org

A arepa é o que nós quisermos que ela seja. Perto ou longe da pátria, ela acompanha-nos e recheamo-la como quisermos, sem julgamentos - com aquilo que tivermos à mão. Como um abraço, dá-nos o que precisamos naquele momento.

A arepa não é pomposa, nem arrogante. Não tem expectativas, nem tem favoritos. Não nos olha de alto a baixo e aponta-nos o dedo, por entre dentes, por termos usado mozzarella em vez de queso de mano porque “assim não é típico”. Não é preciso que os planetas estejam alinhados e que busquemos os ingredientes raros necessários. Ela não nos promete nenhuma experiência culinária sublime. Sabe que este encontro fugaz, este “café rápido numa esplanada para pôr a conversa em dia” por entre vidas preenchidas e distâncias vincadas, é sentido e verdadeiro.


A arepa está sempre lá, como um amigo que nem sempre vemos, mas que ao mas que no reencontro , é como se o tempo tivesse parado e nos sentíssemos em casa. Para este tipo de amigos existe uma expressão, uma palavra carinhosa e muito venezuelana: panas.


Neste momento em que escrevo, a arepa é muito mais do que uma base culinária numa cozinha - é o derradeiro elo dourado entre qualquer venezuelano e o país que os viu crescer e ir embora. Aquele pacote de farinha de milho na despensa é muitas vezes um abraço numa forma redonda e plana. É o fio condutor, saboroso e silencioso, que une uma diáspora que foi crescendo rapidamente na mesma proporção que a segurança e estabilidade do país diminuiu.

No setor criativo e gastronómico no qual o meu trabalho se insere - este é o meu modesto protesto para apelar a lembrar que, no momento em que este artigo está a ser publicado, a liberdade da Venezuela está a ser feita refém face às fraudes eleitorais que mancham o país (a 28 de Julho de 2024, as eleições sob um regime autoritário decretam vitória do partido de Maduro, apesar de inúmeros índices de que os resultados foram manipulados e outros partidos silenciados). 


É para todos os panas que dentro do país, cujas vozes se mantêm firmes, apesar da contínua repressão e silenciamento violento; para todos os panas que cá fora, têm o coração apertado e anseiam por um dia regressar a uma Venezuela que já não existe, e talvez não exista mais; para todos os panas que como eu, não são venezuelanos mas foram acolhidos e encontraram nela uma casa. 


Não podendo mudar o mundo sozinha, escrevo estas linhas - se nunca comeu uma arepa antes, experimente. Usando as palavras de Fernando Pessoa: “primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Neste caso, talvez primeiro passe ao lado com o seu sabor subtil mas um dia, acorda-se com vontade de ir comer uma, só porque sim. E a melhor parte? Pode recheá-la com o que quiser: os verdadeiros panas aceitam-nos como somos.


Artigo escrito por Oriana Mata

Próximo
Próximo

Corfu à mesa